Crónica da Semana
Neste separador convidamos os autores a deixarem aqui uma marca do seu trabalho e valor literário. Por isso, todas as semanas há um texto novo que poderá ser uma crónica, um conto, uma fábula ou poema, já publicado ou inédito.
Arrumadora de Palavras
Por: António Vilhena
És tu que arrumas as palavras quando parece não haver mais nada, quando os sinos das igrejas se silenciam e os peregrinos regressam a casa com o coração tranquilo. À hora do repouso, no meio da folhagem, um melro esboça um adeus ou uma soturnidade, talvez, um cumprimento extensível ao vale. É nesses instantes que as palavras se procuram umas às outras, em que a luz mistura a noite e o dia, como se, nesse misto, encontrássemos o que sempre procurámos. E o que procuramos? Um pouco de nós nos outros, os outros que nos faltam, o tudo que é quase nada, o insignificante que faz toda a diferença quando o melro canta. Eu sei que a resposta é insuficiente e vaga, não alimenta as expectativas de cada um; eu sei que era mais fácil fazer outras opções: render-me ao óbvio, acantonar-me nas coisas que brilham, fingir não ver a essência que alimenta o sonho.
Quando se viaja, só alguns vêem a paisagem como ela é, o que está lá, mas eu gosto de lhe acrescentar outras paisagens do passado para que ela viva, se perpetue e renasça. Assim, o futuro adiciona a memória que atravessou o tempo e as vidas, as vozes e os enlevos, os arquitectos da emoção e os pergaminhos dos heróis. Fica sempre tanto por dizer na hora de acrescentar um ponto à história. Às vezes é preferível voltar ao princípio, soltar as letras, dar-lhes asas e, como as andorinhas, esperar que a Primavera adoce os aromas. Depois vem a liberdade que ajeita o silêncio na folha branca e deixa os rios sulcarem os verbos e as mãos nas planícies; vem a poesia instar os homens ao deslumbramento, à volúpia dos instantes onde o horizonte parece efémero.
Se uma bailarina rodopia sobre a íris do poeta, o mundo transforma-se na metáfora da beleza “como uma bola colorida”, tem outros nomes e o poema é tudo o que a sugestão permite. Há um encanto simbólico onde cabem os mistérios do olhar e as insinuações do corpo. Permanece incólume a silhueta entre a folhagem, as sombras escondem “um futuro que houve dantes”, um anfiteatro de representações clássicas onde, ainda, se ouvem ecos de Electra, Creúsa, Ismena, Antígona ou de Dejanira.
O futuro do passado é o que permanece dentro de nós, com saudades de um futuro que construímos todos os dias. Escutar esses ecos é um compromisso existencial, um exercício despojado de preconceitos, condição necessária para arrumar as palavras e os afectos onde o mar repousa a sua ira. Sublime é o adjectivo que escolhermos para a humildade e o conforto da esperança, é nele que habitam as palavras que dão sentido ao canto do melro e que transfiguram as emoções. Uma rosa tem todos os elementos da vida, mas algumas pessoas exigem um jardim. Querem o universo, quando uma pétala seria suficiente para o diálogo. O mais difícil é compreender! Ascender às montanhas para falar com os deuses é um desejo antigo, mas é a linguagem dos homens a mais difícil. Não se trata de escrever e ler, mas de sentir, de escolher as paisagens ocultas na semântica, os rios invisíveis quando a ausência é mais forte.
Procuro-te onde o labirinto esconde os centauros e o olho esfíngico encaminha o aprendiz até à promessa silenciosa das vestais. Arrumas as palavras onde a lâmina corta a respiração e resgata o amor do leito de insónias. O que procuramos? A coragem, uma pétala, a linguagem da paixão e, talvez, o silêncio.
António Vilhena
Nome de código: Liberdade
Por:Ana Ribeiro
Sentada nesta secretária cinzenta, desbotada e velha, com a luz do Sol – vinda da única janela que conheço desde há dois anos – a assumir a forma de vários fragmentos. Pego na caneta lascada e já quase sem tinta e começo a escrever. Escrevo à liberdade, termo que não faz parte da minha existência nem do meu reportório, há dois anos que esta breve divisão: simplória, rasteira e desprovida de sentimentos, é a minha casa e o meu parco conhecimento de liberdade.
Liberdade sem amor. Liberdade sem poder ter qualquer tipo de conceito sobre o que é amar, porque é outro termo do qual estou privada e que tudo fizeram para que não fizesse parte do meu imaginário e do meu vocabulário. Cresci sem saber o que é realmente o amor. O amor de uma família, o amor dos amigos, o amor de uma alma gémea. Infelizmente, a única pessoa que mais me amou, foi aquela que menos o conseguiu demonstrar; para ele: amor era girar tudo à sua volta, era uma vida de sobressaltos e de escravidão. Era levar o amor de alguém por becos sem saída. Liberdade é poder amar.
Liberdade é ter direito a ser criança e a viver a infância. Liberdade é ter direito a brincar e a ter medos. Liberdade é sermos capazes de conseguir sobreviver ao mundo, quando o mundo mostra ser grande demais para nós (pelo menos para mim…)
Liberdade é aceitar o que fomos e o que somos. Liberdade é termos uma palavra a dizer. Liberdade é poder escrever todas as palavras que quiser sem nada me ser imposto. Liberdade é poder sonhar. Liberdade é sorrir de felicidade sem ter um motivo concreto. Liberdade é poder escolher o livro que mais desejo ler, pegar nele como se pegasse no mundo ao colo e sentar-me no meio da natureza sem restrições.
Liberdade é falar e poder dizer o que penso e o que sinto. Liberdade é poder soltar um “Amo-te”, um “Quero-te”, um “Gosto de ti” sem pensar nas acções e nas palavras. É agir por impulso. É sentir.
Liberdade é poder-me defender e partilhar os meus pontos de vista e razões. Liberdade é chorar as alegrias, as mágoas e as emoções. Liberdade é poder ter um estilo próprio. Liberdade é tão simples como poder viajar sem qualquer destino, é ser livre para conduzir o meu próprio caminho e seguir a estrada da minha própria vida. Liberdade é simplesmente ter poder de escolha e opção.
Liberdade é ser uma janela aberta para o mundo. Liberdade é como a natureza no seu estado mais puro. Liberdade é como uma palete de cores.
Liberdade é ganhar ou perder na mesma medida.
Estou desprovida de liberdade, como se fosse uma marioneta em que alguém alheio a mim é que decide o que faço, o que penso e para onde vou. Sinto que o mundo que me rodeia está desprovido de preocupação e sensibilidade: esse é o conceito mais actual de liberdade. Negarmos a própria liberdade.
Liberdade é um dia descobrir que afinal o mundo não se resume apenas a uma simples janela, a quilómetros de distância do chão. Liberdade é sentir que muito em breve aquele portão enferrujado e desprovido de qualquer cor, se irá abrir para me devolver o pedaço de liberdade que me roubou.
Liberdade é ter tempo para contar as estrelas antes de dormir.
Passaram seis meses; escrevo para partilhar que liberdade é também saudade, é reviver momentos e acima de tudo é poder contar os dias e o grande dia chegou para mim. Vou ser livre.
Liberdade é viver e ser feliz. Seja de que maneira for…
Tantas coisas que podias fazer comigo...
Por:Ana Cristina Pinto
Esta manhã entrei na igreja.
Já há muito que não entrava na casa de Deus. É frequente passar-lhe à porta, mas apesar de a encontrar aberta, não entro. Poderia de quando em vez, gritar “Ó da casa!” e esperar que o vulto anafado do Senhor se aproximasse arrastando os pés sobre o soalho lustroso onde se ajoelham as beatas zelosas, tementes à sua ira e envergonhadas dos seus pecados. Todavia, avanço.
Olho de esguelha para o Cristo, tento distrair-me com os vitrais, a imagem imaculada de Nossa Senhora, a caixa dourada das hóstias sobre o altar, mas é a santa barba do redentor que me traz outra vez a imagem do M, naqueles dias de inverno em que vestia grossas camisolas de lã e se recusava a cortar o extenso tufo de pêlos que lhe tapavam metade do rosto.
Imediatamente pensei: “Tantas coisas que podias fazer comigo e só queres fazer-me
falta.” Pequei de novo. Foi mais forte do que eu.
Ana Cristina Pinto
- Espera! Não saias. Temos que conversar.
A sua mão já apertava o manípulo da porta mas parou.
- Não me amas?
Porque lhe perguntava tal coisa? Será que não sabia que aquilo a que chamava amor era sobreavaliado?
- Olha para mim por favor. Diz-me o que queres que mude.
Não queria que mudasse. Só queria sair.
- Todo este tempo juntos e não consegues pensar em mim? No que sinto?
Já tinha passado realmente muito tempo.
- Existe outra é isso?
Existiria sempre outra, outras, não importava.
- Vais ter com ela?
Ainda não sabia o que faria.
- Investi tanto em ti e agora abandonas-me como a um animal.
- À minha família?
Podia fazer um jantar e comunicava ao mesmo tempo, quem sabe com um bom vinho.
- O que vão os nossos amigos pensar?
Que demorou muito tempo.
- Vamos dividir tudo aquilo que comprámos com tantas dificuldades?
Podia ficar com tudo. Odiava particularmente o sofá.
- Não achas que nos devemos mais uma oportunidade?
Não estava a ficar mais novo.
- Vai então, sai como o cobarde que és.
Abriu a porta, assobiou para o cão que veio a correr a abanar a cauda também ele queria sair dali depressa, tinham que aproveitar aquela oportunidade antes que mudasse de ideias.
O silêncio que reinava atrás de si era ensurdecedor. Voltou-se lentamente para olhá-la pela primeira vez desde que aquela ladainha começara.
- Queres vir passear connosco? Já não faz tanto calor e vamos só um pouco para além da curva da estrada.
Pegou no casaco.
Saíram juntos, de mãos dadas, com o coração aquecido pelas diferenças que os uniam. Mais tarde cairiam na cama onde se amariam, dois corpos suados, saciados sem promessas e o dia seguinte seria um novo recomeço com mais algumas diferenças.
MBarreto Condado
Esta manhã entrei na igreja.
Já há muito que não entrava na casa de Deus. É frequente passar-lhe à porta, mas apesar de a encontrar aberta, não entro. Poderia de quando em vez, gritar “Ó da casa!” e esperar que o vulto anafado do Senhor se aproximasse arrastando os pés sobre o soalho lustroso onde se ajoelham as beatas zelosas, tementes à sua ira e envergonhadas dos seus pecados. Todavia, avanço.
Às vezes até acelerando o passo, confesso, não vá o Criador espreitar pela fresta de uma janela, a da sacristia que costuma estar entreaberta, e chamar-me para dois dedos de conversa. “ Então rapariga, que tens feito?” Emudecia.
A uma pergunta dessa natureza, não há nada a dizer. Tenho feito o que toda a gente faz. Peco. Peco por defeito e por feitio, por determinação e teimosia, por tudo e por nada. Peco.
Ainda agora quando me benzi em frente do altar, olhei a figura de Cristo na cruz e pequei. “ Era um homem bonito este Jesus”. Pequei.
Achei-o belo, mesmo assim abatido e de ar sofredor, o rosto atraente, de olhos doces, mas profundamente sedutores e pensei que se tivesse sido eu no lugar de Maria Madalena me teria apaixonado perdidamente por Ele. Em menos de nada ali estava eu a imaginá-los juntos, a Ele e à Madalena, fazendo amor num qualquer barco de pescador, no meio de tainhas saltitantes implorando para serem devolvidas ao mar da Galileia, no Monte das Oliveiras enquanto os apóstolos dormissem, ou até no interior do Sinédrio, mal as portas se fechassem e os rabinos voltassem a suas casas após os sermões.
Jesus, como o pintam, era um homem bonito. É um facto. Madalena, suponho, também não seria nada de deitar fora.
Nestes dois dedos de conversa com o Senhor Deus, eu teria que pedir-lhe perdão por mais este deslize. “ Como ousas atribuir ao meu filho uma conotação sexual?” Deus perguntaria, claro. Ou então não.
Talvez Ele entrasse na minha mente, antes mesmo de eu lhe responder. Talvez nem fizesse a pergunta. Deus, de tão perspicaz que é, e conhecendo bem as suas criaturas em geral, e esta criatura que hoje lhe entrou pela casa dentro em particular, sabe muito bem que a razão de eu atribuir ao seu filho um sex appeal que me deporta para o plano dos blasfemos e sacrílegos, tem a ver com o facto de o achar incrivelmente parecido com o M quando ficava 1 mês sem desfazer a barba. Sabendo disso, perdoar-me-ia a intrepidez. Espero.
Pelo sim pelo não, e antes que o escriba celestial some mais uma falta ao meu já extenso registo de episódios indesculpáveis, rezo um Pai Nosso e uma Avé Maria. Olho de esguelha para o Cristo, tento distrair-me com os vitrais, a imagem imaculada de Nossa Senhora, a caixa dourada das hóstias sobre o altar, mas é a santa barba do redentor que me traz outra vez a imagem do M, naqueles dias de inverno em que vestia grossas camisolas de lã e se recusava a cortar o extenso tufo de pêlos que lhe tapavam metade do rosto.
Imediatamente pensei: “Tantas coisas que podias fazer comigo e só queres fazer-me
falta.” Pequei de novo. Foi mais forte do que eu.
Ana Cristina Pinto
A Curva da Estrada
Por: MBarreto Condado- Espera! Não saias. Temos que conversar.
A sua mão já apertava o manípulo da porta mas parou.
- Não me amas?
Porque lhe perguntava tal coisa? Será que não sabia que aquilo a que chamava amor era sobreavaliado?
- Olha para mim por favor. Diz-me o que queres que mude.
Não queria que mudasse. Só queria sair.
- Todo este tempo juntos e não consegues pensar em mim? No que sinto?
Já tinha passado realmente muito tempo.
- Existe outra é isso?
Existiria sempre outra, outras, não importava.
- Vais ter com ela?
Ainda não sabia o que faria.
- Investi tanto em ti e agora abandonas-me como a um animal.
Não era certo, quando saísse levaria o cão.
- E o nosso projecto de vida, vais deitar tudo a perder?
Aquele projecto não era seu.
- As viagens que planeámos fazer.
Tinha no bolso das calças as chaves do carro.
- A casa que sonhámos comprar.
Queria ir para perto do mar, talvez a Marginal.
- Os filhos que contámos ter.
Para ele o tempo nunca seria uma preocupação.
- Vais deixar tudo para trás?
Tentava há uns bons dez minutos mas ainda não conseguira.
- O que vou dizer aos meus pais?
O que quisesse.
- E o nosso projecto de vida, vais deitar tudo a perder?
Aquele projecto não era seu.
- As viagens que planeámos fazer.
Tinha no bolso das calças as chaves do carro.
- A casa que sonhámos comprar.
Queria ir para perto do mar, talvez a Marginal.
- Os filhos que contámos ter.
Para ele o tempo nunca seria uma preocupação.
- Vais deixar tudo para trás?
Tentava há uns bons dez minutos mas ainda não conseguira.
- O que vou dizer aos meus pais?
O que quisesse.
- À minha família?
Podia fazer um jantar e comunicava ao mesmo tempo, quem sabe com um bom vinho.
- O que vão os nossos amigos pensar?
Que demorou muito tempo.
- Vamos dividir tudo aquilo que comprámos com tantas dificuldades?
Podia ficar com tudo. Odiava particularmente o sofá.
- Não achas que nos devemos mais uma oportunidade?
Não estava a ficar mais novo.
- Vai então, sai como o cobarde que és.
Abriu a porta, assobiou para o cão que veio a correr a abanar a cauda também ele queria sair dali depressa, tinham que aproveitar aquela oportunidade antes que mudasse de ideias.
O silêncio que reinava atrás de si era ensurdecedor. Voltou-se lentamente para olhá-la pela primeira vez desde que aquela ladainha começara.
- Queres vir passear connosco? Já não faz tanto calor e vamos só um pouco para além da curva da estrada.
Pegou no casaco.
Saíram juntos, de mãos dadas, com o coração aquecido pelas diferenças que os uniam. Mais tarde cairiam na cama onde se amariam, dois corpos suados, saciados sem promessas e o dia seguinte seria um novo recomeço com mais algumas diferenças.
MBarreto Condado
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